Edição #15
Lisboa, 2011
“DKANDLE tece paisagens sonoras transcendentes vibrantes e multicoloridas, misturando texturas Shoegaze difusas e reverberantes, meditações Dream Pop hipnotizantes, tons Grunge lamacentos e tensões Post-punk temperamentais, intensificadas com lirismo comovente e vocalizações emotivas e pensativas”
A consulta com a astróloga não sai da minha cabeça. Acho que era melhor não ter ido naquele consultório, sabe? Ela com aquela conversa de que eu tinha que tomar cuidado com overdose... Olhou bem nos meus olhos e perguntou: “Você usa drogas?” E eu, com as pupilas suuuuper dilatadas, nem tinha como disfarçar... Só podia confirmar com a cabeça, bastante embaraçado. Foi até interessante a parte em que ela disse que trabalho há várias vidas com música. Mas a parte em que disse que morri degenerado por drogas na minha última vida e que o risco é parecido para a vida atual é que me deixou preocupado. Mas sei lá... E se essa mulher for uma charlatã?? Depois que vi aquele programa de TV com um falso vidente, que mostrava a sua tática de antes fazer perguntas e depois jogar com probabilidades em cima do que foi respondido… Eu já havia dito a ela que sou músico, e ela viu que eu estava com as pupilas dilatadas, por isso veio com esse papo. Ai, mas e se for verdade?... A Sandra, minha primeira astróloga, também disse para eu tomar cuidado com as drogas. “Pelo amor de Deus, Daniel, não se envolva com drogas!”
Medo.
Hoje é noite de Revéillon. Estou numa festa na cobertura de um amigo, o Roberto, que mora bem em frente a uma pequena praia, num recanto escondido da orla. Vimos a queima de fogos pela janela. A festa até está animada, mas não estou curtindo. Síndrome de abstinência me deixa mal-humorado.
“Gente, tá na hora de descermos com o barco de Iemanjá e lançarmos ao mar!”, conclamou Roberto. “Todos já escreveram seus pedidos?”
Eu ainda não. Fiquei em dúvida se deveria fazer isso. Crendice tola, pensei. Mas por outro lado, decidi me permitir participar da brincadeira. Por que ser tão duro comigo mesmo? Escreve lá, não custa nada!
Peguei um pedaço de papel e uma caneta e fiz um pedido. Dobrei o papel e depositei no barquinho feito à mão, junto com os pedidos das outras pessoas. O barquinho tem uma imagem de Iemanjá e várias velas acesas, além dos pedidos. Descemos todos para a praia em frente. Roberto e seu amigo italiano estão só de sunga e entraram no mar com o barquinho, que foi levado por uma corrente. E lá se vão nossos desejos, juntos com as velas acesas, cujas luzes se perdem na escuridão do mar...
Voltamos todos para o apartamento. Vim até à janela para ver onde o barquinho está. Ele retornou para a praia, e num gole só foi consumido por uma onda. Só eu testemunhei a cena. Procurei pelo Roberto para contar o que acabei de ver, mas ele está tão feliz, conversando numa rodinha de amigos, que achei melhor guardar para mim. Fiquei um pouco perturbado, mas pensando bem, acho que isso não tem importância, deixa pra lá.
Na verdade o que não sai da minha cabeça é o fato de que é noite de Revéillon e todos estão colocados, menos eu. Estou lutando para não me entregar. Mas está tão difícil… Logo hoje, esse dia pede um aditivo! Meu Deus, acho que não vou resistir, a tentação é muito forte. Ah, é só hoje, qual o problema? Prometo não usar mais, é a saideira! Vou ligar pro meu dealer, ele me vende mais barato do que qualquer um aqui. Espero que ainda esteja atendendo.
Conheci o Claudinho há exatamente um ano, numa festa de psy-trance na praia de Ipanema. Basta eu ligar e ele traz para mim no nosso ponto de encontro. É só pagar e pronto, tenho livre acesso ao Paraíso. Simples assim. Nunca foi tão fácil conseguir chegar ao Nirvana sem precisar ser um monge budista enclausurado no Tibete. É como uma viagem num foguete: você entra, acomoda-se e ele te conduz até às alturas. Paradise-on-delivery.
Ao procurar seu número na agenda do meu celular, surge a astróloga na minha mente. Ah, mas o dia hoje vai ser lindo! Não tem uma nuvem no céu, e o Sol já começa a despontar os seus primeiros raios. Acho que vai ser uma onda boa… É irresistível! Ah, vou ligar.
“Oi, Claudinho! Aqui é o Daniel. Escuta, você ainda tem aqueles convites da festa?”
“Tenho sim. Quer quantos?”
“Dois.”
“Tranquilo. Daqui a quinze minutos.”
Vou até à pracinha aqui perto. É onde sempre nos encontramos. Ele chegou antes de mim. Apertamos as mãos e discretamente pego duas pílulas.
“E aí, qual é a marca dessa?”
“Essa é a XL, muito boa, pancadão.”
“Ah é?...”, perguntei com um sorriso igual de criança.
“Sim, essa é forte, hein! Uma só já é poderosa.”
“Legal. Toma a grana, são cinquenta reais, né? Valeu então, vou pr’aquele lado.”
Estou tão ansioso, mal consigo me conter. Onde vou tomar? Em casa não dá, meus pais estão lá. A festa no apê do Beto já vai acabar e não sei de nenhuma outra festa. Também não quero tomar em algum lugar que já tenha tomado, como na praia do Pepino ou na Lagoa. Hum, acho que vou para algum lugar exótico, tipo ilha de Paquetá. Isso, está decidido! Vou acessar o Paraíso num Paraíso!
Nossa, está bem quente hoje... Não são nem 9 horas ainda e o termômetro já marca 32ºC. Ótimo, vai ser legal curtir com o Sol. Peguei o metrô e desci na Uruguaiana. Estou no terminal de barcas, mas a barca para Paquetá vai sair agora e os portões acabaram de fechar!
“Por favor, que horas sai a próxima barca pra Paquetá?”
“Daqui a duas horas.”
“Puxa, posso pegar essa barca ainda? Ela ainda tá ali, é só correr que eu pego.”
“Desculpe, os portões já fecharam.”
E agora, para onde vou? Pensei em ir para Petrópolis, lá é lindo, mas já estou na estação das barcas mesmo, acho que vou para Niterói, vai sair uma barca em cinco minutos.
Estou no andar de cima da barca, ela sai daqui a pouco. Há poucas pessoas ao meu redor. Não aguento mais esperar, vou tomar agora! Quando a onda começar a bater vou estar chegando no outro lado da baía.
Não pensei duas vezes. Peguei uma pílula e levei à boca. Olhei ao redor, ninguém me notou. Peguei a garrafa e dei um gole n’água. Pronto, agora é só esperar impacientemente por uns quarenta minutos.
Não estou mais pensando no que a astróloga disse. Minha vontade de tomar a pílula é maior do que o medo que ela me incutiu. Vou boicotar qualquer tentativa sua de aparecer na minha cabeça. Quero apenas viajar.
Quando a barca finalmente chegou a Niterói, o tão desejado efeito começou a bater. Hum, como é bom estar nesse estado mental! Meu cérebro é inundado por um bem-estar inenarrável. É uma verdadeira orgia de cores. Nenhuma palavra seria capaz de descrever o prazer que sinto.
Peguei um ônibus, vou até Icaraí. De vez em quando tomo um gole d’água, está muito abafado hoje. Desci do ônibus, vim até à praia e vou ficar sentado embaixo dessa árvore.
Droga, aquele policial está vindo para cá. Disfarça...
“Bom dia”, disse ele, mecanicamente. “Posso ver seus documentos?”
Entreguei minha identidade. Ele passou os olhos rapidamente.
“O que você está fazendo aqui?”
“Ouvindo música e olhando a paisagem”, respondi enfaticamente.
Ele ficou uns cinco segundos olhando para a minha cara. Graças a Deus estou de óculos escuros. Ele ia dizer algo, mas o seu rádio fez um ruído e uma voz metálica começou a falar, não entendi direito, mas parece que estão informando sobre um problema no Centro ou algo assim. Então ele disse: “Tome cuidado, essa área é perigosa”. Devolveu minha carteira e retirou-se, deixando-me sozinho.
Que saco, me deu até uma bad trip agora. Estou tremendo. Fico muito sensível quando estou nesse estado, qualquer contrariedade me deixa perturbado. Droga, a onda estava tão boa… Não consigo voltar à onda boa. Vou fazer uma meditação e tentar relaxar, acho que se fizer um esforço eu consigo.
OK, não está funcionando... Preciso sair dessa, assim não vai dar! Acho que vou tomar a outra pílula.
Estava levando a pílula até a boca, quando ouvi uma voz me dizer: “Daniel Thomas, as portas do Paraíso estão fechadas para você”. Então surgiu um anjo vestido de branco, acompanhado por outro anjo. Retruquei: "Ah, é?... Vou arrombar o portão e entrar de qualquer maneira. Quero ver vocês me impedirem!" Tomei a segunda pílula num gole só. Depois de alguns minutos, a onda bateu maravilhosamente bem. "Deixem-me entrar!", gritei, chutando os portões, que abriram-se num só golpe. Os anjos observaram perplexos, mas sem me impedir. “Não disse que eu ia entrar? Vocês não podem me impedir de entrar aqui!” Um dos anjos me fitou com um olhar triste. “Seu passeio não sairá de graça”, disse ele. “Ninguém vem aqui sem pagar um preço”. Respondi, zombando: “Já paguei, custou cinquenta reais. Agora deixem-me em paz!” O outro anjo o puxou pelo braço. Saíram pesarosos e desapareceram, deixando-me sozinho. Nem ligo, estou nos jardins do Éden e nada mais me importa.
Hum, essa música nos meus ouvidos está divina!... É muito bom poder acessar as altas esferas através da música. Não queria estar em outro lugar! Como é bom viver… É uma felicidade absurda. Que céu azul maravilhoso! E aquelas montanhas lá no Rio, hipnotizantes... E essas flores, tão lindas… Vou dar um passeio pelas redondezas. Olha o Museu de Niterói! O Oscar Niemeyer é mesmo um gênio... Vou tirar umas fotos. Mas deixa eu tomar um pouco d’água, está muito quente e minha boca está seca.
Estou começando a suar muito, preciso achar uma sombra. Acho que vou voltar para a praia, lá tem umas árvores, vou sentar embaixo de uma e meditar ouvindo música.
Nossa, que água suja... Seria ótimo se essa praia fosse limpa, aqui seria mais lindo ainda. Mas tudo bem, está bom assim mesmo. Vou sentar aqui e ficar viajando. Eu gostaria sinceramente de poder ficar nesse estado o resto da minha vida. É uma sensação transcendental, não dá nem vontade de me mexer de tão bom que está. Sei que existe o Paraíso, eu estou nele…
Quero me tornar Um com o Universo. Vou fechar meus olhos e esquecer o mundo material. De olhos fechados sou transportado para as Altas Esferas. Permito-me voar, voo alto e chego em outros mundos, em outras galáxias. Fundi minha alma com essa música. Sinto-me eterno e pleno. Sinto-me tão perto de Deus...
E então, o meu coração, que estava até agora batendo muito rápido, parou de bater abruptamente.
Foi como se alguém o apertasse bem forte com as mãos e ele tivesse explodido, parando de funcionar. Sim! Sim! Não está mais batendo! É o fim da linha, e isso é a única certeza que eu tenho. Em menos de um instante, meu espírito percebeu que não terá mais meu corpo como sua morada.
Estou indo embora! Tudo que sinto nesse momento é pavor. A perspectiva de ter minha vida interrompida por um motivo tão tolo me atemoriza. Oh, não! Não quero isso! Imediatamente me levantei do chão, num só impulso, com toda minha força. A minha vontade de viver (ou o meu medo de morrer) é tão grande que forcei minha alma com todas as energias a fazer o meu coração voltar a bater.
Ordenei ao meu cérebro energicamente: “Vamos, faça ele funcionar! Ainda não é a hora! Volte a bater!!!”
Depois de cinco longos segundos, que mais pareceram uma eternidade… meu coração voltou a bater novamente.
Estou muito assustado. Respiro ofegantemente e minha circulação disparou. A música nos meus ouvidos de repente virou uma sinfonia satânica. Arranquei o fone da cabeça, preciso de silêncio agora. Olho ao redor, vejo alguns pescadores mais à frente, mas ninguém notou a minha presença. E se eu morrer aqui, agora?... Tomei outro gole de água, estou suando muito. O calor está realmente muito forte. Meu Deus, o que houve com meu coração?? Senti alguma coisa nele, ele parou de bater, eu juro! Oh, Deus, perdoe-me, não me deixe morrer aqui! Não quero ir embora agora, muito menos desse jeito.
Aos poucos meu coração está voltando a bater normalmente, e começo a sentir uma paz interior. Tudo ficou calmo de novo, e voltei a sentir-me maravilhosamente bem. É que ainda estou alto. Tudo bem… Tudo bem… Acho que posso voltar a curtir a onda, antes que ela acabe. Mas é impossível não pensar no que acabou de ocorrer. Acho que super aqueci com esse calor todo. Será que eu iria morrer agora? Ou foi só um susto que os anjos me pregaram?
Olha aquela montanha perto do centro do Rio, o que é aquilo? Um incêndio? Não, é uma luz muito concentrada e clara, e não tem fumaça, não pode ser incêndio. É um carro? Não, a luz é muito grande para ser o simples reflexo de um automóvel. Comparando com os prédios, é uma luz maior do que a de uma casa. Acho que são os anjos... Eles estão fazendo um sinal, lembrando-me do que acabou de acontecer. Um luz me advertindo para não ir longe demais…
A onda começou a baixar e estou voltando ao estado normal. Sinto-me muito cansado. Nesse momento sinto uma grande apatia, nenhuma vontade sequer de sorrir. Meu nível de serotonina deve estar próximo do nulo. Estou péssimo. Uma tristeza sem fundo se apoderou de mim. O tombo foi muito alto, e estou num abismo agora, esforçando-me para voltar ao nível da superfície.
O melhor que faço é voltar para casa e dormir. Valeu a pena ter passado por isso? Não sei… Acessei o Paraíso sim, mas os anjos tinham razão: o passeio não sairia barato.
Muitas coisas passam pela minha cabeça. Por que não podemos todos ser infinitamente felizes o tempo todo?... Eu queria ficar naquela onda para sempre, mas o passeio nunca dura muito tempo e sempre tenho que voltar à realidade. Acho que a vida é isso mesmo, um jogo de luz e sombras, e não dá para fugir disso. Sem as sombras, como vou perceber as distâncias, os contrastes e as dimensões? As sombras servem para realçar as partes iluminadas.
Lembrei do pedido que escrevi no barquinho para Iemanjá. Pedi para que ela me ajudasse a conseguir ser bem sucedido na minha música. Agora compreendo que fui atendido hoje mesmo. Ela ajudou meu coração a manter o seu ritmo. Só com sua batida ritmada é que a música da vida pode ser tocada e experimentada. Muito obrigado por mais essa oportunidade. A vida é uma grande sinfonia, e o Universo o seu instrumento.
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